domingo, 30 de maio de 2010

DOENÇA MENTAL E AS TECNOLOGIAS DE CUIDADOS


O século XX despede-se legando à humanidade uma velocidade jamais vista, em termos de produção, reprodução e coletivização de saberes. O acúmulo sem precedentes de conhecimentos, forjado pelo saber científico, vem possibilitando a ampliação da expectativa de vida e a melhoria das condições gerais de existência dos seres humanos, ainda que de forma desigual e iníqua.

Um pressuposto da saúde mental, desde a fundação da Psiquiatria pineliana, no nascimento da Medicina Científica do século XIX, é de que a tecnologia de ponta nessa área tem sido a relação entre sujeitos com histórias singulares, irreproduzíveis e intransferíveis. Desde sempre, buscou-se uma explicação para o fenômeno do adoecimento psíquico e possíveis terapêuticas.

Como humanidade, temos nos organizado em convenções. Convenções ou consensos mínimos são acordos, agenciamentos, códigos universalizadores e universalizantes que norteiam e dão os limites socialmente aceitáveis, nas relações dos seres humanos entre si e entre grupos. São as leis, as normas, a ética, a moral e os conhecimentos postos a serviço da humanidade.

Se, por um lado, a convenção imprime um sentido redutor das manifestações humanas ao senso comum, de outro, propõe um caráter viabilizador de trocas e de continências (como continente e não como repressão), delimita aonde é possível chegar, um tempo, um espaço. A convenção ancora a experiência no campo das realizações e da possibilidade de repetição, se necessário for, podendo a experiência ou repetição ser um processo criativo, superador ou, então, meramente reiterativo.

A história da humanidade vem inscrevendo convenções sobre o que é doença e tratamento, numa dialética mediada pelas condições materiais e objetivas onde práticas em saúde podem ser identificadas. No campo da saúde mental, da mesma forma, podem ser identificados conceitos de adoecimento psíquico e terapêuticas operadas nos diferentes períodos de desenvolvimento político e econômico e da organização da sociedade, desde os primórdios até a idade contemporânea.

Os povos primitivos (e representantes desse tipo de organização social preservado até os dias atuais, como os povos indígenas) admitiam o transtorno mental como um fenômeno de causa mágico-religiosa identificado como possessão de espíritos maléficos. Para tal concepção de doença, desenvolveu-se uma tecnologia de cuidados operada pelo xamã ou sacerdote, com rituais de expulsão de espíritos, rezas e benzimentos. Dado que à convenção para o conceito de doença harmoniza-se uma convenção de tratamento, para cada concepção de processo saúde-doença corresponde uma determinada tecnologia de cuidados. Nos tempos atuais, algumas seitas e rituais religiosos também aderem a essa concepção de processo saúde-doença mental e operam com as mesmas tecnologias de cuidados.

Na Antigüidade greco-latina, a concepção de doença mental baseava-se nas causas naturais. Hipócrates (460-356 a.C.), por exemplo, descreveu a histeria como deslocamento do útero (hystera, do latim, matriz), um ente de vida própria cujo deslocamento provocava dispnéia, taquicardia e desmaios na mulher. A tecnologia de cuidados da Antigüidade greco-romana era composta por massagens corporais, dietas, passeios e viagens. Incluía matrimônio para virgens e viúvas ou fumegações vaginais com ervas aromáticas para atrair o útero para o seu lugar. Os romanos prescreviam, ainda, atividades como tratamento. Galeno (cerca de 150 d.C.) afirmava que a atividade era o melhor médico da natureza. Portanto, para a concepção das causas naturais da doença, expressa num órgão do corpo humano, o tratamento também era no corpo, harmonizando ou antagonizando os sintomas com seu curso natural, por meio da atitude menos invasiva e mais contemplativa do médico greco-romano.

Na Idade Média, ou Idade das Trevas, a convenção sobre a doença mental, sob influência da Igreja Católica, retomou a concepção mágico-religiosa. Nesse contexto, as convenções eram ditadas pelas leis da Igreja, não sendo propriamente um campo de acordos e trocas. Nas relações entre os seres humanos, a lei natural era a diferença de lugar social (senhor e escravo) que seria superada somente na vida eterna. A forma de garantir esse equilíbrio era o exercício da caridade (para os senhores) e submissão (para os não-senhores e escravos). Ora, quem subvertia a ordem natural da diferença emanada de Deus, era herege ou profanador - louco.

A Idade Média desenvolveu duas tecnologias de cuidado para a loucura: a Inquisição e o banimento na Nau dos Loucos. A primeira foi uma forma cruel e cruenta de silenciar os detentores de saberes laicos, que ameaçavam o saber secular aprisionado pelo clero. Nesse contingente, morreram mulheres do povo que adquiriram conhecimentos de ervas medicinais, por meio da tradição oral, e exerciam grande influência popular - as bruxas. Morreram, também, anatomistas, astrólogos, cantores e poetas que disseminavam, por meio da arte, críticas sociais, além das histéricas, devassos, pródigos e hereges.

O louco pobre, não errático, caracterizando um outro tipo de despertencimento, era colocado na Nau dos Loucos e vagava pelos rios europeus até ancorar num lugar que o recolhesse ou remetesse novamente à errância. Mais uma vez, denota-se coerência entre concepção do processo saúde-doença e tratamento.

No Renascimento, a concepção de loucura complexificou. O longo período de repouso das ciências laicas, experimentais, favoreceu o desenvolvimento da filosofia. No século XVI, o louco era entendido como o sujeito inadaptado ao processo de urbanização das cidades e da expansão, em todos os campos do saber-fazer. Esse período pode ser caracterizado como a retomada das conquistas marítimas, da expansão das fronteiras geo-políticas, o retorno à filosofia grega e o afastamento da totalização da Igreja Católica. Exemplo disso foi René Descartes (1596-1650) fundador do Racionalismo moderno e do novo estatuto do homem clássico: o homem da razão.

Dessa forma, a existência humana, distinta da existência de Deus, proposta pelo cogito cartesiano, discriminou, também, duas formas de existência dos seres humanos: o arrazoado e o desarrazoado. Essa foi a convenção da Idade Clássica para definir a loucura ou o transtorno mental. Isto é, se a razão humanizou o homem e o libertou da regência divina, a desrazão diferenciou o desarrazoado do homem humanizado e o aproximou da animalidade.

Em 1656, em Paris, foi fundado o primeiro Hospital Geral, não com função de tratamento, mas de isolamento e controle social. A finalidade do Hospital Geral era acolher loucos, lascivos, pedófilos, usurpadores, mendigos, etc.(8). Assim, a tecnologia para cuidar dos transtornados e outros despossuídos do Renascimento era o internamento que configurava ao desarrazoado a condição de animalidade.

Cabe ressaltar que a essa tecnologia de cuidados aderia uma prática e uma representação que perseguiu o que viria a ser a prática de enfermagem até o século XX. Tratava-se da função de vigilância, punição pelo uso de métodos coercitivos, por meio da força física ou de instrumentos disciplinadores, como a roda, banhos, acorrentamento, supressão de luz solar e isolamento.

A Revolução Francesa, em 1789, e a Revolução Industrial, na Inglaterra, consolidaram a passagem do modo de produção feudal para o capitalista, rompendo os resquícios de uma determinada relação de subordinação entre os seres humanos (senhor e escravo) e inscrevendo outro tipo de interdependência entre donos dos meios de produção e donos da força de trabalho. Nesse contexto, a loucura estava associada à inadaptabilidade do ser humano de incluir-se no mundo produtivo, de consumo e de acumulação. A loucura era confundida com ociosidade.

Guiado pelos ideais Iluministas de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, Philippe Pinel, em 1793, quando foi indicado para Bicêtre, capturou a loucura para o campo médico, libertando-a da animalidade. É consenso entre autores que esse ato e essa data fundaram a psiquiatria, como campo da medicina moderna, e a medicalização da loucura, pois, utilizando os métodos da medicina classificatória, Pinel propôs a um só tempo:
- Uma nosografia - o corpo conceitual de base científica que inscreveu a loucura nas categorias médicas e a ela deu o estatuto de doença mental, diferenciando-a da ociosidade;
- Uma relação específica entre o médico e o doente, onde o primeiro dizia a verdade da doença pelo saber que tinha dela e poderia submetê-la pelo poder que sua vontade exercia sobre o doente;
- Um lugar, o manicômio, onde a medicina podia descobrir a verdade da doença, afastando tudo o que podia mascará-la, confundi-la ou dar-lhe formas bizarras.

Essa é a síntese alienista que definiu a convenção de transtorno mental do século XIX. Ou seja, o louco, diferentemente dos outros excluídos, era passível de tratamento porque a causa da sua doença era a paixão pervertida. Para uma concepção de doença de cunho médico-moral, a tecnologia de cuidados do século XIX foi o Tratamento Moral, que tratava a paixão pervertida do doente por meio da influência da paixão reta do médico, pelo exercício da disciplina e pelo uso do trabalho do doente como forma de adaptabilidade e utilidade social.


Fonte: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-11692003000600015

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